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14 Jul 2015

A cultura e os vícios da TV

12h32

O grande desafio do produtor independente que pretende produzir conteúdo para a TV, que ainda não entrou no mercado ou vem realizando produções culturais para os canais públicos, é conhecer a “cultura da televisão”. Desde sempre, o produtor independente ficou fora da TV aberta, que produz seu próprio conteúdo, e de uma hora para outra se vê em uma enrascada ao esbarrar na falta de conhecimento sobre a TV, até mesmo para apresentar um projeto a um dos muitos canais que surgiram recentemente e precisam de conteúdos inéditos e com qualidade. A televisão tem características muito próprias e possui um mercado bem formado, que não se assemelha às características de conteúdo para cinema, institucional e da publicidade, como muitos pensam.

A TV tem seus códigos, seus formatos e suas formas específicas de buscar audiência. Um dos motivos de a TV aberta produzir sua programação é a necessidade de manter um controle sobre o conteúdo, ela define o conteúdo e formata o seu perfil, é ela quem escolhe o que vai exibir. É a TV que geralmente aponta o caminho da produção, e não ao contrário. Isso pode parecer mercadológico demais, que sufoca a criação independente, mas não é. Os canais por assinatura seguem o mesmo critério, já que têm públicos bem definidos, e isso sempre foi uma vantagem ao produtor, que pode contar com um direcionamento criativo ou até mesmo autoral para o seu conteúdo.

As dezenas de produtoras que trabalham faz alguns anos com os canais internacionais e os da Globosat, como GNT, Canal Brasil e Multishow, levaram algum tempo para conhecer suas necessidades. As produtoras, aos poucos, trabalhando em conjunto com os canais, foram pegando o jeito de a TV lidar com o independente. Sem esse conhecimento passado pelos canais, provavelmente, a produção independente não teria chegado onde está hoje. E isso não sufocou sua originalidade.

O problema mesmo é o desafio de inserir centenas de novas produtoras junto aos novos canais e aos já existentes, para que adquiram essa cultura da televisão. Posso garantir que, ao fazer ao menos 100 contatos com produtoras pequenas e médias neste segundo semestre, atuando como responsável pelo conteúdo de um dos canais de TV por assinatura que irá trabalhar com o produtor independente, o grande problema é a falta de conhecimento da cultura da televisão. A grande maioria tem a cultura do projeto patrocinado, que não funciona muito bem na TV.

Eu apontaria três barreiras “místicas” criadas pelo mercado de TV, e que servem de parâmetros para a formação desses novos profissionais e produtoras, que é questão da importância dada à formatação de “projetos” para TV, e não de “programas”; da eficiência dos “pitchings” manipulando os canais na tentativa de empurrar seus projetos, e de que o “roteiro” é fundamental em um seriado de ficção. “Projetos” são importantes na área do cinema, direcionados para os departamentos de marketing das empresas onde irão captar patrocínios, mas para a TV esse modelo não funciona, porque o programa de TV precisa sempre ter em mente um público, e não a divulgação de uma marca. Um projeto de TV não pode ser uma proposta, por isso, quanto menos papel, melhor. Quando mais a ideia de um programa de TV for se desenvolvendo, menos se precisa de um projeto. A TV quer programas prontos, ela precisa ver o conteúdo. Se o produtor não pode bancar um piloto, um projeto para ser entregue a um canal precisaria simular este conteúdo de forma muito clara. As produtoras que trabalham longamente com os canais não precisam de projetos. E um piloto só funciona se ele for resultado de vários testes, já que a sua função é encontrar o tom certo do seriado, e um primeiro piloto nunca seria bom o suficiente se ele não fosse regravado e repensado ao menos umas três vezes.

Muitos projetos são barrados no FSA, porque não definem corretamente o seu potencial de público, já que esse público dará o retorno dos recursos investidos, e não a divulgação da marca de uma empresa. Um projeto de um programa de TV, seriado ou não, só deveria ser escrito depois de um programa desenvolvido e “pronto”. O produtor reclama da falta de conhecimento desta cultura de TV quando é questionado a reescrever seu “projeto” para um público de TV e a maneira como este projeto vai atingir esse público visado.

O produtor, quando consegue um roteiro de um seriado, é como se tivesse em mãos a galinha dos ovos de ouro para entrar no segmento da TV. A falsa visão de que o seriado de ficção é uma questão de roteiro tem prejudicado os produtores. Assim como no cinema, que não tem problemas com roteiros e sim com a falta de criatividade de suas histórias e narrativas, os seriados precisam também de histórias autênticas. Quase 100% dos seriados de ficção apresentados aos canais têm um “projeto” com argumento fraco e um roteiro com poucos tratamentos. Falta desenvolver mais o argumento antes de escrever um roteiro. São histórias tratadas apenas no nível do discurso, das ações dos personagens, faltando densidade suficiente para revelar as camadas mais profundas dos personagens, que é na verdade o que segura o espectador. Todos os seriados de sucesso não se criaram por suas meras histórias, mas pelo que não é narrado, pela autenticidade que só se consegue a custa de muito trabalho de reescrever um texto em busca deste aprofundamento, até descobrir a linguagem invisível que o discurso encobre. Os percursos internos dos personagens, seus estados de alma, que são os verdadeiros motores das relações passionais que todo personagem precisa ter para ser autêntico.

Neste momento, todos os canais recebem propostas de seriados e programas de TV, que muitas vezes são apresentados pelos produtores através de pitchings, onde o produtor tem poucos minutos para falar de seu “projeto”. A barreira não é o acesso aos canais, nem aprender a fazer um pitching para vender um projeto, mas sim a falta de condições para o produtor ter um projeto bem desenvolvido. Um pitching só funciona quando o produtor sabe realmente o que é o seu projeto, o potencial de público, a certeza de que conhece profundamente o seu conteúdo e os meios de produzi-lo. Sem isso, não há como convencer um profissional de TV que esteja representando um canal. Em um pitching com os consultores do FSA ou no rápido contato com um representante de um canal, não há aplausos, nem torcida, apenas o conhecimento daquilo que está se propondo.


Por Hermes Leal, jornalista, escritor e documentarista, mestre em Cinema pela ECA/USP, doutorando em Semiótica na FFLCH/USP e autor do romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros livros

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